Extrato

Extrato

Caraca! Que noite! Sentado no chão, as costas contra uma caixa de madeira, ao lado do seu priminho Chico, a cabeça ainda virando e com uma fome que rasgava seu estômago, Ronildo tentava colocar um pouco de ordem em suas lembranças. Há anos que Chico e ele queriam integrar o bate-bola da Sereia. Provavelmente por influência do tio Ataulfo. “O bate-bola é a verdadeira tradição carnavalesca”, costumava dizer. “As escolas de samba viraram espetáculos para turistas e muitos blocos também. Mas o bate-bola é coisa nossa. Vem do povão, existe só por e para ele.”

Não foi fácil juntar o dinheiro das fantasias. O dono da oficina mecânica, onde Ronildo fora empregado durante dois anos, não tinha mais nada para lhe oferecer. “É a crise para todos, companheiro”, explicara. “Já sei que você trabalha bem, e teria gostado de poder mantê-lo na empresa, mas, se não tenho mais clientes, não preciso nem do melhor lanterneiro do mundo, mermão!” Ronildo e Chico conseguiram uns bicos aqui e ali. Trouxeram caixas da Central de Abastecimentos, em Irajá, sacos de cimento para obras do bairro, fizeram algumas entregas para negociantes, venderam bolos na rua.

Mesmo assim, o dinheiro estava longe de bastar. Parte dele estava destinado a contribuir para as despesas das famílias; restava pouco. Ronildo tentou pedir emprestado o que faltava para várias pessoas, sem sucesso. A família não tinha como ajudar; já tinha que arcar com as despesas para tratar da saúde do avô. Os amigos e os vizinhos não tinham condição — pelo menos, foi o que disseram. Foi só quando ficou bem claro que não tinha mais solução que Ronildo resolveu visitar o Marlon Brando, sem dizer a ninguém.

O comum era recorrer aos serviços do negociante só quando realmente se precisava. Era dono de algumas lojas de roupas e, paralelamente, emprestava dinheiro e resolvia problemas, graças às suas numerosas relações. Desempenhava ao mesmo tempo o papel de banco e o de despachante da comunidade. A proximidade dele, tanto com o tráfico quanto com a polícia, era conhecida, embora não se soubesse exatamente o que tricotavam juntos.

Marlon Brando não hesitou em conceder o empréstimo. Nem perguntou para que o moço precisava da grana. “Aqui não é Casas Bahia”, costumava dizer. “Zero papelada e zero inadimplência.” Foi assim que conseguiram pagar as fantasias. Chico soube que parte do montante fora emprestado e precisaria ser devolvido. Não perguntou por quem. E Ronildo ainda não sabia como juntariam verba para pagar a dívida.

Mas valeu a pena! A fantasia era realmente linda e essa noite foi irada.

(,,…)

Um lado de Ronildo se sentia orgulhoso de ter participado. Outro ficava imune à alegria e à satisfação. Conseguira afastar as suas preocupações durante a noite toda, até o início da manhã, mas agora que estava acordado e satisfeito, elas voltavam com mais força. O Marlon Brando lhe mandara um recado dois dias antes. Queria o seu dinheiro para o final do mês, ou seja, dentro de uma semana, “conforme o combinado” (porra, o que era isso? Ronildo não lembrava de ter fixado um prazo com ele). E também apresentou um cálculo que incluía juros, o que Ronildo não previra. A dívida de repente se tornara mais urgente e mais alta. De que forma iriam juntar tanto dinheiro em tão pouco tempo? Pedindo emprestado a outra pessoa? Mas se soubesse a quem, teria feito isso diretamente em vez de pedir ao Marlon Brando. E não seriam os bicos na Central de Abastecimentos que bastariam.

— Chico, a gente precisa de trocar uma ideia — anunciou.

— O que foi?

— Depois te falo. Quando a gente tiver sozinho.